Conheceram-se em um bar do Mercado Central, entre o burburinho de gente, o cheiro de fígado acebolado e corredores apinhados de comidas, plantas, forros e panelas. Ela acomodou-se no balcão vazio à esquerda, junto a duas amigas; ele encostou de frente para ela, enquanto esperava o colega atrasado.
Ele, Torreu: pele tostada de sol, barriguinha saliente, cabelos pretos, fartos e desalinhados, camisa de gola redonda esgarçada, figura frequente no mercado. Jornalista daqueles boa-praça, sobrevivente de um veículo de esquerda.
Ela, Cervelieta: pele dourada, cabelos claros, esguia, vestido claro milimetricamente passado a ferro, assessora de imprensa de uma entidade de direita. No mercado, apenas pela insistência das amigas, um lugar do qual ela sempre dizia querer duas coisas: queijo e distância.
Dois inimigos, aparentemente.
O fato é que Torreu pediu torresmo e cerveja. Cervelieta, cerveja e torresmo. E não houve falatório suficiente que os fizesse parar de se olhar. O amigo dele não chegava; as amigas dela falavam de uma trilha na Serra do Cipó. De repente, todas se calaram. Os buchichos começaram. Quem olhava para quem? Torreu aproveitou a deixa.
— Acho que a gente combina!
— Mesmo? E o que te levou a essa conclusão?
A plateia em volta começou a se agitar. Três passos para a direita, ouvidos em pé.
— O mercado, a cerveja e o torresmo.
— Acho que precisa bem mais que isso para combinarmos.
— Tipo o quê?
— Se você é do signo de Câncer com ascendente em Peixes?
— Putz! E o que isso significa?
— Que você não tem companhia para ir a bares e puxa assunto com estranhos para não se sentir sozinho.
— Você é má, moça! Na verdade, sou do signo de Sagitário com ascendente em Aquário, o que significa que gosto de gente estranha.
— Assim como eu? — disse ela, enquanto tomava mais um gole.
— Provavelmente... — ele respondeu, sorrindo.
Um silêncio conveniente pairou entre os dois. Ele se aproximou, arrastando pelo balcão a bebida e o prato. O amigo dele nunca apareceu. As amigas dela foram para outro canto. Formados em Comunicação Social, ela por uma universidade particular, ele na Federal. Contaram sobre o trabalho e como era estar nas duas pontas de uma mesma profissão. Ela, por boletos; ele, por filosofia de vida. O gato dele se chamava Tim, o dela, Farofa. Ela entendia de cerveja artesanal, ele, de plantas. Gabriel García Márquez e Cem Anos de Solidão, Isabel Allende e A Casa dos Espíritos e Machado de Assis e Dom Casmurro moravam em suas casas. Afinal, Capitu traiu Bentinho? Ele achava que não; ela tinha certeza de que sim. Ele fazia caminhada na Praça Raul Soares todo dia pela manhã. Ela fazia yoga, às segundas e quartas, no Buritis. Torreu era cruzeirense; Cervelieta, atleticana.
O tempo no mercado era insuficiente para a biografia daquelas duas vidas recém-encontradas. E, no momento em que os portões de ferro foram fechados, anunciando o fim do expediente, ela proferiu o início:
— Tem mais cerveja lá em casa!
Ele olhou para o balconista e pediu a conta. Tirou o celular do bolso, abriu o aplicativo de motorista e perguntou para ela:
— Sua rua e o seu número?
Dez anos, três meses e cinco dias depois, Torreu e Cervelieta ainda andam juntos pelos bares do mundo. Os pais deles, por ideologias políticas, tentaram separá-los, mas não houve veneno verbal suficiente para afastá-los.
Ele grisalho, ela com os cabelos tingidos. Ele, em um veículo digital de notícias; ela, assessora de uma ONG. Um mesmo apartamento no Santa Efigênia: um gato, muitas plantas, os livros de Itamar Vieira Júnior, uma parede com retratos dos lugares que visitaram, gavetas recheadas de papéis e moedas, um quarto para visitas, cozinha de azulejos estampados com pequenas flores, uma mesa riscada, a cama de casal onde se amaram e brigaram, muitas vezes, nos dias de chuva, frio e calor.
Conhecidos pelos donos de botecos e pelos garçons que assoviam imitando pássaros, eles mantêm um combinado: a cerveja, um prato de torresmo — daqueles carnudos e sequinhos — e um desejo latente de manter o sabor do primeiro encontro.
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